Design como ferramenta
de transformação cultural e social

Barbara Miotto, 24 de agosto de 2018
Este texto foi publicado no Medium







Discursamos sobre o papel do design de interação na construção de relações entre humanos e máquinas. Mas qual o poder do design na criação de relações entre seres humanos?



Após experiências diversas como de designer, encontrei no Design da Experiência do Usuário e no Design de Interfaces Digitais, espaços para o estudo do ser humano, suas atividades, os espaços que habita e as construções sociais que permeiam a vida coletiva.
Esse tipo de observação é o ponto de partida fundamental para a implementação de projetos digitais nos modelos de trabalho iterativos, onde são destacadas as necessidades reais de pessoas reais, trazendo novas maneiras de suprir a carência de acesso a serviços e bens de consumo.

“There is a common misunderstanding that interaction design is a fundamentally concerned with the digital medium. It is true that the new digital products have helped designers focus on interaction and the experience of human beings as they use products. However, the concepts of interaction have deep roots in twentieth-century design thinking and have only recently emerged from the shadow of our preoccupation with “visual symbols”and “things”. — R. Buchanan

Entre outros fatores, a Era da Informação, trouxe a compreensão de que as equipes de desenvolvimento de produtos não precisavam ser compostas apenas por designers, mas sim, deveriam agrupar profissionais de diversas formações em diversas áreas do conhecimento, que pensassem como designers e fossem capazes de absorver conceitos de pesquisas com usuários e prototipar soluções viáveis a serem testadas.

Adaptando-se a essa nova lógica de trabalho, o designer deixa de ser o foco principal da elaboração dos projetos e assume a posição de facilitador do desenvolvimento, um organizador de ideias. O designer pode, e deve, atuar como um mediador de processos e absorver ideias diversas.

Assim, se destaca o papel do profissional que possui capacidades técnicas e teóricas que possibilitam conectar as ciências humanas e exatas, trazendo o destaque para o olhar do usuário aos problemas cotidianos. Durante a execução do projeto, pessoas com vivências e experiências válidas, possíveis utilizadoras dos serviços, também participam ativamente da construção do produto e dividem o espaço com os designers e profissionais, colaborando para que a qualidade do produto final seja elevada e que os possíveis problemas que possam ser encontrados sejam mapeados e solucionados antes da sua implementação.




A rede global


Desde o final do século XX e início do século XXI, vivemos um período histórico denominado de Era do Informação. Com a criação da internet, as estruturas sociais e de comunicação se remodelaram em um modelo de distribuição de dados, onde se democratiza o acesso à informação e são subvertidas diversas hierarquias organizacionais e sociais.
Na ótica da psicanálise social, as redes promovidas pela internet estão revertendo o pensamento clássico de que cada indivíduo é um ser único e relativo. Segundo Barglow, 1994 “A mudança histórica das tecnologias mecânicas para as tecnologias da informação, ajuda a subverter a as noções de soberania e auto-suficiência que serviram de âncora ideológica à identidade individual desde que os filósofos gregos elaboraram o conceito, há mais de dois milênios.”

redes de comunicação dristribuídas

Assim que, com o surgimento da internet, pudemos observar uma re-adequação da sociedade às inovações tecnológicas contemporâneas. Vivemos um período de transformação dos conceitos de relações entre usuários, serviços, produtos e experiências.

Segundo Castells, as sociedades são determinadas historicamente pela produção, experiência e poder. Produção, a ação da humanidade sobre a matéria (natureza) de modo a gerar benefício através dela, ou seja, criando produtos e consumindo parte deles, produzindo riquezas com o excedente e investindo esse valor em geração de outros valores. A experiência, é a ação dos humanos sobre eles mesmos, determinadas pelas interações culturais e biológicas dos indivíduos e aqueles que ocupam os mesmos ambientes. Poder é a relação entre os indivíduos de imposição de conceitos de uns sobre os outros, através da violência física, moral e simbólica.

Nessa nova estrutura social, que se manifesta em diversas maneiras, conforme o contexto social, cultural e organizacional em que se encaixa, os elementos de poder e de hierarquia de posse dos meios de produção que fomentaram a sociedade industrial e as instituições derivadas desse período histórico perderam sua relevância, em detrimento do acesso às experiências e vivências. A experiência é o foco principal do ser humano pós-moderno e a materialidade perde a importância, quando questionada pela rede digital em que estamos inseridos. Assim, que os grandes produtos da atualidade são aqueles que oferecem serviços de gestão e organização de bens já existentes, para que através destes, sejam incorporados serviços acessíveis a diversas parcelas da população, muitos que anteriormente eram reduzidos à uma pequena elite.

“Numa sociedade pós-industrial, em que os serviços culturais substituíram os bens materiais no cerne da produção, é a defesa da personalidade e cultura do sujeito contra a lógica dos aparatos e mercados que substitui a luta de classes.” — Touraine, citado por Castells 1999

No cenário atual, o papel das empresas do seguimento da inovação é possibilitar a conexão entre pessoas, assim permitindo que estas fomentem redes de compartilhamento horizontal, atendendo às demandas cotidianas.
O papel do designer de produto — que até pouco tempo era colocado como mão-de-obra de uma sociedade industrial e capitalista, restrito à elaboração e viabilização de produtos materiais, completamente dependentes de uma sociedade industrial e de modos de produção opressores fundamentados em sistemas de hierarquia, domínio de classes e da força de trabalho — se transformou e se adaptou ao cenário atual, enxergando suas potencialidade metodológicas na compreensão de problemas e das necessidades de pessoas e grupos, viabilizando a concepção e prototipação de soluções, e por consequência criação de novos valores para outros meios não-materiais.

“Uber, a maior empresa de táxi do mundo, não tem carros. Facebook, a mídia mais popular do mundo, não cria conteúdo. Alibaba, a varejista mais valiosa do mercado, não tem estoque. E Airbnb, a maior provedora de hospedagem do mundo, não possui qualquer imóvel. Algo interessante está acontecendo”  — Jim Whitehurst, CEO da Red Hat.

Entre diversas metodologias e formatos de trabalho adotados para configuração destes produtos, foi expandido o olhar do designer e seu formato de trabalho para outras esferas do conhecimento e outras pessoas com formações distintas. Este modelo foi denominado Design Thinking, um formato comumente difundido que descreve a maneira de pensar do designer. O fundamento desse modelo de pensamento é o exercício de enxergar problemas reais que a sociedade e que outros indivíduos possam ter, elaborar possíveis soluções, prototipa-las e testá-las como validação da solução desse problema. Para isso, diversas metodologias de inovação, design de produto e design estratégico são apropriadas e combinadas, pessoas com diversas formações, repertórios e experiências são reunidas para trazerem olhares distintos sobre a mesma realidade.








O papel do design


IOs artifícios tecnológicos se adaptam à sociedade, assim como a sociedade se adapta aos artifícios tecnológicos. Estes dois estão conectados num processo, também iterativo de mutação. Como resultado enxergamos artefatos tecnológicos que se adaptam cada vez mais às necessidades dos indivíduos e estes, cada vez criam novas relações sociais e culturais, como fenômeno de adaptação mútua.

“O determinismo tecnológico é provavelmente um problema infundado, dado que a tecnologia é a sociedade, e a sociedade não pode ser entendida nem representada sem as suas ferramentas tecnológicas”. — M. Castells, 1999

A pesquisadora Kristina Niedderer , investigou através de uma série de objetos, o potencial da utilização do design para a geração de consciência, afetividade e conexões entre indivíduos. Os produtos criados eram utensílios domésticos, baseados em conceitos do design interativo e de interface. A ideia era desconstruir os conceitos que fundamentam um produto e entender como estes podem ter a finalidade de gerar novos conceitos. Forçando comportamentos não usuais, entendemos como as interfaces podem ser uma ferramenta de experimentação e alusão à diferentes ideias, que podem ser interpretadas pelo usuário de diversas maneiras. O foco da experimentação é medir o potencial das interfaces como geração de novas relações, não apenas entre homem e interface, mas entre todos os que participam do ciclo da experiência relacionada ao produto.

Objetivos como atenção, iluminismo, pro-atividade e senso de comunidade, podem ser frutos de produtos que se adequam à uma rotina de usuário e transformam a maneira como ele se comporta em relação à mecanismos pré-estabelecidos.
A pesquisadora investigou esse “potencial performático” dos produtos e como existem diversas possibilidades de alcançar uma consciência coletiva e relações entre outros indivíduos através das experiências que estes trazem.

“The conjecture was that we can design artifacts that communicate and cause mindfulness of others in the context of social interaction by means of a modification of function, and that such artifacts should be called performative objects.” — K. Niedderer

social cups Kristina Niedderer

“Social Cups,” Kristina Niedderer, 1999.


Em 1999, Niedderer desenvolve o projeto “Social Cups”, um jogo de copos, que se assemelhavam a taças, porém sem uma base estável. Para se manterem estáveis sobre uma superfície e executarem a sua função primária (armazenar os líquidos e auxiliar uma pessoa a beber um líquido), era necessário que ao menos três copos estivessem unidos por um sistema de conexões, que proporciona a estabilidade. O resultado esperado era a transmitir aos usuários uma reflexão sobre o conceito social presente ao uso dos copos, a ideia da colaboratividade como artifício de conexão e possibilidade de alcançar um objetivo em comum, nesse caso: manter os copos em pé.

“…focusing on how human beings relate to other human beings through the mediating influence of products. And the products are more than physical objects. They are experiences or activities or services, all of which are integrated into a new understanding of what a product is or could be.”— R. Buchanan

A pesquisadora desenha uma tríade de relacionamentos, com causa e consequência, onde o design os artefatos estão presentes horizontalmente aos seres-humanos, influenciando na criação e transformação de conceitos sociais e culturais.

The Triangular Relationship of Interaction Kristina Niedderer

“The Triangular Relationship of Interaction,” Kristina Niedderer, 1999.


Pesquisas de usabilidade e design de interação geralmente focam na interação usuário e máquina, portanto mesmo no que conhecemos como design centrado no usuário, a atenção acaba sendo colocada nos meios — tecnológicos, materiais, etc — e não nas relações derivadas do uso do produto.

Seria o produto final de um interface, artefato digital e suas funcionalidades, ou o impacto que gera naqueles que a utilizam e as mudanças de comportamento que causam?